Ao ritmo da maça e da foice, as mulheres trabalham o linho e a terra. A alegria compassada da música marca os tempos da lavoura e do bater do tear. Depois ao serão, as mulheres juntam-se em redor dos fiadouros e contam romances de outrora.

Em dias de romaria, o adufe acompanha os cantares de peregrinação e as “Alvíssaras” à porta da igreja. No interior de Portugal, no isolamento da serra, as mulheres cumprem o ciclo da vida cantando o trabalho, o lazer e a religião.

O Grupo de Cantares de Maçadeiras do Orfeão Universitário do Porto surgiu na década de 70, sendo resultado das pesquisas levadas avante pelo Grupo de Investigação Etnográfica e da consequente divisão dos cantares tradicionais do OUP em três vertentes: Cante Alentejano, Coro Popular e Cantares de Maçadeiras.

Este grupo tem o intuito de representar as mulheres que trabalhavam no campo e que participavam em romarias e procissões religiosas, através dos seus cantares e uso de instrumentos tradicionais. Interpreta cantares femininos antigos, originários predominantemente das regiões das Beiras, mas também do Minho e Miranda do Douro, que ainda subsistem graças à tradição oral.

A recolha feita nesta página pretende ser apenas uma breve explicação acerca do que este grupo apresenta e representa, não havendo no entanto informações absolutas acerca destas tradições que, naturalmente, se vão alterando e assumindo outras características, conforme os tempos e conforme a fonte transmissora dos conhecimentos.

TEMAS

Podem classificar-se os cantares femininos em três categorias: cantares de lazer, cantares de trabalho e cantares de carácter religioso, que reflectem raízes culturais profundas das gentes raianas, amealhadas ao longo de sucessivas gerações e que se mantêm, na sua essência, na prodigiosa memória de uma mão cheia de pessosas idosas.

Cantares de lazer

São canções de serão onde , em geral, prevalecem as adivinhas, as anedotas, os romances, as canções de ronda,… Podem ser acompanhados de trabalhos leves como fiadouros ou bordados (trabalhos silenciosos, ritmados, constantes,…). Em certos casos, a fiação tinha em lugar em conjunto, grande ocasião de cantares e danças e refeições colectivas festivas. Cantar é uma forma de escape a um estilo de vida austero, acompanhando-se, por vezes, com o toque do Adufe. O maior animador destas ocasiões, o Adufe, é um instrumento tradicionalmente feminino, tocado com grande destreza pelas mulheres beirãs. Hoje em dia é quase o ex-libris de certas regiões sendo também encontrado em Trás-os-Montes, ainda que nome e formas diferentes – o pandeiro. É, em geral, feito com pele de cabra que envolve um aro poligonal de madeira. Estes cantares manifestam-se ainda nos serões mornos de Outono, em plena rua, à volta de uma fogueira colectiva, as mulheres a manipularem e fiarem a lã e o linho, os homens a preparar os instrumentos leves de lavoura, onde se desenrolam contos populares, velhos rimances e canções, terminando por vezes em clamorosas danças de terreiro.

Cantares de trabalho

Geralmente ritmados pelas ferramentas de trabalho (maços do linho a bater nas pedras lisas; tascadeiros e sedeiros; raspar dos cardadores, cardando lã para cobertores; bater do tear…). “Antigamente, passar no Cano de Cima era um dos meus encantos. Por aquela congosta extensa, era rara a casa em que não havia um tear. E eu adorava passar pela rua entre aquela música – trela, trela; trela, trela; trela, trela, a que se abraçavam aqui, ali, os cantos transparentes das tecedeiras. (…) Outro dia, em Atães, com que alegria eu ouvi o trela, trela dum tear. Parei. Subi…, para espreitar pela janela, e ver a tecedeira que tecia e cantava. Moça nova, trigueira e alegre.” Em relação ao linho, são as regiões das Beiras e a do Gerês as que mais memórias guardam e as que maior musicalidade nos oferecem. Quanto à lã, é em Trás-os-Montes, que permanecem os mais ricos exemplos das canções de cardar, de que se realça “Tirioni”, cantado no único dialecto português que existe – o Mirandês – filho do latim e irmão do castelhano e português, mas individualizado com estrutura linguística própria. Mantêm-se ainda os tosquiadores de rebanho, em terras de Miranda, com as canções típicas deste mister.

As mulheres com muita frequência maçavam o linho, por vezes mesmo à noite, ao luar, em grupo, ritmando o trabalho ao sabor das cantigas eivadas dos ideais mais puros. O trabalho da espadelagem, sentado ou de pé, era duro: um dia inteiro, ou longas horas, à noite, após um dia de trabalho, batendo o linho com a espadela, em pancadas fortes, certas, num ritmo regular, rápido, sem descanso. Mas, mormente nas espadeladas colectivas, essa dureza era recoberta por uma atmosfera lúdica, quase festiva, com cantares, brincadeiras…

Enquanto a espadelada decorre, cantam em coro, a várias vozes. “A música, o canto-ai, quantas e quantas vezes, os não ouvi, por estes campos, verdejantes na Primavera, tostados ou loiros, no fim do Estio… As setenta mulheres, raparigas quase todas, sentam-se nos bancos e, o espadadoiro fixado entre os pés, de espadela em punho, esperam que lhes dêem os novelos de linho… O grupo canta e dança. E já as setenta mulheres batem com as espadadelas no linho, levantando nuvens de poeira que lhes polvilham os cabelos. Cantam também. Aos pés amontoam-se tomentos e arestas. Nas mãos ficam-lhes linho e estopa. O grupo canta e dança. Páro a contemplá-lo. (…) Nos bancos, as espadelas não param. Malham que malham, certeiras, no linho posto nos espadadoiros. É mais espessa a nuvem de poeira; são mais brancos os cabelos das mulheres. A caseira, a Sra. Aninhas, recolhe, por toda a parte, preste, o linho espadelado.” Uma vez que as mãos se encontram ocupadas com os utensílios de trabalho, estes cantares nunca são acompanhados de Adufe, pois seria etnograficamente incorrecta a sua utilização.

Cantares de carácter religioso

Geralmente acompanham missas ou peregrinações a santuários em que o Adufe é frequentemente usado interpretando o Grupo a “Senhora do Almortão”. Ficaram ainda conhecidas as “Alvíssaras” ou “Alvistras” à porta da Igreja, cantadas pelas mulheres em sublimes harmonias, ao toque do arcaico Adufe e ao ritmo do pulsar do coração. Os temas literários destes cânticos, embora de inspiração popular, cremos que remontam até à origem musical. Modificadas pelo tempo, aparecem-nos por vezes, canções religiosas e profanas com trechos musicais de umas e outras. Nestes temas longos e ternos de cunho inicialmente religioso, de raízes profundamente cristãs, quer-se adivinhar a alma despreocupada e tranquila, alegre e cândida do povo, em forma de agradecimento e fé. Vai longe o tempo, em que as romarias eram, simplesmente, a “feira da alegria”e da cantiga pura, horas de expansão da mocidade, cansada do labor campestre de um ano inteiro. O dia da romaria era para a aldeia o despertar da sua alma em delírio de sonoridade e de frescura, em igual pureza à das manhãs primaveris. Nas quadras imperfeitas mas expressivas, ingénuas e puras, vai todo o agradecimento duma alma reconhecida, pelo conforto vindo em hora de extrema aflição.

INSTRUMENTOS

Os Maços

Os maços, assim como os fiadouros, as tascadeiras, a dobadoira, etc são instrumentos de trabalho têxtil e servem para maçar e trabalhar o linho. No caso do Grupo de Maçadeiras do OUP, os maços são também o instrumento que lhe dá nome e são usados enquanto instrumentos de ritmo que acompanham apenas os cantares de trabalho.

O Adufe

Muito se tem dito acerca do adufe e acerca do contexto em que este instrumento surge e no qual é tocado. De facto, este instrumento e os seus ‘semelhantes’ podem ser encontrados em regiões diferentes, com formas geométricas variadas, em canções de caráter diversificado e, por esse motivo, é frequente ouvirem-se designações distintas para instrumentos muito similares: adufe, pandeiro quadrangular, pandeiro beirão, pandeiro transmontano, pandeiro mirandês. Por este motivo, algumas informações que nos são transmitidas oralmente ou até através de textos que lemos podem parecer contraditórias e algo confusas, pelo que iremos aqui centrar-nos exclusivamente na localização e descrição do ADUFE, tradicional da região beirã.

Originário das Beiras Interiores – e hoje sobretudo da Beira Baixa – o adufe é o grande símbolo local, sendo a imagem musical da província. Pode ser encontrado por toda a região, sobretudo em Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Arraia e Charneca, entre outros distritos, com notável densidade em muitas casas (pendurado na parede das salas), sendo propriedade exclusiva das mulheres que o tocam. Ele é, por isso, exclusivamente feminino e é o acompanhante específico dos velhos cantares da região, ouvindo-se tanto nas “alvíssaras” das suas principais celebrações religiosas – como as Festas de Maio, em Monsanto – como em quaisquer outros cantares de festa, nas romarias, em horas de lazer aos domingos, à porta de casa ou nas danças da gente nova.

Na década de 60 era possível encontrar por toda a parte qualquer mulher sentada à sua porta a cantar e a tocar o adufe aos domingos e, por vezes, este acompanhava os simples entretenimentos de rua e certos trabalhos rurais, nomeadamente as ceifas; na Charneca, por exemplo, ele tocava-se nas desfolhadas de milho e pelos caminhos, ao sol-posto, de regresso das fainas de azeitona.

Neste sentido, no repertório do Grupo de Maçadeiras, o adufe é normalmente tocado para acompanhar as músicas de lazer e de religião, não estando presente nas canções de trabalho, uma vez que isso seria etnograficamente incorreto.